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22/04/2009 Esperança, ganância e medo: a psicologia por trás da crise financeira
Para explicar a crise econômica atual, o mundo das finanças dispõe de um léxico particular — do qual fazem parte, por exemplo, os credit default swaps (instrumentos que protegem o credor contra a inadimplência), marcação a mercado (situação em que o valor dos ativos de um portfólio é valorizado pelo preço corrente de mercado pelo qual se poderia liquidá-los em um dado momento em situações normais de mercado) e papéis lastreados em hipotecas obtidas por meio do crédito subprime (concedido a mutuários de histórico de crédito ruim). Os psicólogos, por sua vez, costumam recorrer a termos diferentes: esperança, ganância e medo.

A linguagem da psicologia ajuda a lidar com o fato de que por trás das estatísticas puras e simples da queda dos preços da moradia e outros indicadores do declínio econômico existe uma multidão cuja composição muda o tempo todo: são donos de casas, banqueiros, donos de empresas, investidores pouco informados. Trata-se, enfim, de pessoas. E as pessoas, em geral, não costumam dar atenção a modelos econômicos bem azeitados, por isso fazem coisas irracionais, que não atendem a seus melhores interesses e que não se justificam apenas pelos números — mas pela emoção.

“Há planilhas, demonstrativos financeiros, modelos, regras e regulamentos”, assinalou Carolyn Marvin, professora da Escola Annenberg de Comunicação da Universidade da Pensilvânia. “Por outro lado, trabalhamos também com percepções de outra natureza.”

Pode-se dizer que a emoção não só ajudou a empurrar os EUA para a crise econômica atual como também pode estar ajudando a manter o país em crise. Em recente congresso que teve por tema “Crise de confiança: a recessão e a economia do medo”, patrocinado pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade da Pensilvânia e pelo Centro Psicoanalítico da Filadélfia, um painel interdisciplinar avaliou a psicologia por trás do cenário econômico atual.

“Haveria uma forma sistemática de refletir sobre nossos sentimentos quando o assunto é economia?”, indagou Marvin, moderadora do painel. A palavra “confiança” comporta dois aspectos: otimismo de um lado e ilusão do outro. Haveria uma matriz psicológica no vocabulário econômico? “Os poderes constituídos têm evitado falar em ‘depressão’”, disse Marvin, “um termo que descreve não apenas o estado atual do mercado, mas que traz consigo, sem dúvida, um problema clínico”.

Há fatores psicológicos em ação por trás da crise, foi a conclusão unânime do painel, embora cada um desses fatores privilegie um elemento diferente: cobiça e excesso de otimismo por trás da bolha imobiliária, ausência de autocontrole por parte de consumidores pendurados em dívidas, choque e um sentimento de traição por parte de americanos que pensavam estar fazendo investimentos seguros, mas que se veem agora diante de um futuro ameaçador e incerto.

“Um quê de cobiça”

A exemplo de várias crises ocorridas na história, a crise econômica atual começou com uma bolha, conforme explica Richard Herring, professor de finanças da Wharton. “As bolhas costumam acontecer quando as pessoas querem comprar alguma coisa simplesmente porque acreditam que poderão vendê-la por um preço maior. Toda bolha vem acompanhada de um quê de cobiça.”

As bolhas de bens imóveis não são novidade, disse Herring, que apresentou em seguida um gráfico com preços de imóveis residenciais ao longo de 400 anos em Herengracht, uma região vizinha ao canal no centro de Amsterdã. No decorrer dos séculos, os preços das casas aumentaram anualmente apenas 0.2% em média, “contudo, entre um período e outro, houve aumentos de 100% e quedas de 50%. A volatilidade era enorme”.

No mercado imobiliário, períodos bons e ruins ocorrem ao longo de ciclos muito longos — em média, a cada 20 anos. Consequentemente, quando os preços da moradia caem, poucos se lembram de que isso já aconteceu um dia. Esse foi sem dúvida o caso na crise recente, uma vez que os preços das casas subiram apenas entre 1975 e 2006. De acordo com Herring, os mercados de bens imóveis são muito sensíveis a picos bons e ruins por sua própria natureza: não existe no segmento um órgão centralizador de informações sobre preços. Os custos das transações são altos e as negociações são pouco frequentes. Além disso, o estoque de propriedades é relativamente fixo no curto prazo. Como os ciclos levam décadas, é difícil dizer quanto valeria uma propriedade a longo prazo. “Não sabemos, de fato, que preços atribuir, portanto é sempre difícil dizer se estamos diante de uma bolha ou se está havendo uma melhora pura e simples dos fundamentos da economia.”

O progresso e o colapso no setor de moradia “está quase sempre associado ao desempenho do sistema bancário”, acrescentou Herring. “Quando alguma coisa boa acontece na economia, há uma tendência de aumento nos preços dos bens imóveis, e os bancos tendem a apoiar esse movimento, porque hoje as pessoas têm garantias.” O otimismo que cerca a elevação dos preços alimenta as ilusões, e como um número cada vez maior de investidores principiantes chega ao mercado, os preços e o entusiasmo aumentam em igual medida. “Entra-se em uma espiral ascendente que pode levar o indivíduo para uma viagem bem longa durante muito tempo. Talvez você esteja se perguntando onde estariam os supervisores e os órgãos reguladores no meio de tudo isso. Com frequência, eles costumam apoiar tal situação, porque gostam de empréstimos garantidos por bens imóveis, já que se trata de bens tangíveis.”

Podemos chamar essa situação de “falácia da tangibilidade equivocada”, brincou Herring ao mostrar o slide de um arranha-céu inacabado em recente período de prosperidade seguido de colapso na Tailândia. “No entanto”, acrescentou, “seria mais correto se nos referíssemos a essa situação como falácia do concreto equivocado”. Uma vez mais, a emoção desempenha um papel expressivo nesse ciclo. As pessoas sofrem de “desastremiopia”, seja porque não conseguem simplesmente imaginar a possibilidade de um colapso econômico, seja porque acham que a probabilidade de que isso aconteça é tão pequena que não vale a pena se preocupar, disse Herring.

Preço da casa própria: sempre em elevação

“Creio que concordamos com o fato de que o excesso de otimismo talvez seja em boa parte responsável pela confusão em que nos metemos”, disse Jeremy Tobacman, professor de negócios e políticas públicas da Wharton. “Houve um otimismo em escala sempre crescente em relação aos preços dos imóveis residenciais.”

Tobacman citou uma pesquisa da Case and Shiller, de 2003, sobre o comportamento dos donos de casas em quatro grandes mercados — Boston, Milwaukee, Los Angeles e São Francisco. Em todos esses mercados, mais de 80% dos donos pesquisados disseram que, em sua opinião, os preços das casas subiriam no decorrer dos anos seguintes. Quando perguntaram a eles quanto esperavam que os preços subissem nos próximos meses, as respostas variaram, em média, de 7,2% em Boston a 10,5% em Los Angeles.

“Mais surpreendentes ainda do que os números de um ano são os números relativos a décadas”, disse Tobacman. Diante da pergunta: “Com relação aos próximos dez anos, quanto, em média, você espera que seu imóvel se valorize anualmente?”, os proprietários de Milwaukee disseram que sua expectativa era de que os preços aumentassem em torno de 11,7%. Em São Francisco, o retorno esperado é de 15,7%.

De modo geral, as pessoas fazem escolhas econômicas ruins porque nutrem um otimismo exagerado em relação ao que farão no futuro, disse Tobacman. Elas transferem, por exemplo, o saldo do cartão de crédito para cartões com taxas de juros elevados e de longo prazo porque acreditam que conseguirão pagar tudo antes do prazo final de acerto das taxas iniciais mais baixas. (A maioria não consegue). Os tomadores que deixam de pagar em dia os empréstimos feitos, geralmente pagam juros que chegam a 90% do montante principal do empréstimo antes de finalmente desistir e parar de pagar.

Um estudo feito em uma academia de ginástica constatou que as pessoas que se exercitavam quatro vezes por mês, em média, optaram por pagar uma taxa de associação de US$ 85, embora a academia oferecesse também uma taxa de US$ 10 a cada vez que suas instalações fossem utilizadas. “Quando perguntamos às pessoas o que elas pensavam em fazer, detectamos uma recusa radical em aceitar a realidade”, disse Tobacman. “Há uma miopia deliberada que nos impede de considerar a possibilidade de resultados indesejados.”

Na recente bolha, tanto compradores quanto credores comportaram-se de maneira extremamente otimista em relação ao futuro. Os compradores ignoraram a possibilidade de que talvez não fossem capazes de se manter em dia com as prestações porque partiram do pressuposto de que os preços das casas subiriam e eles conseguiriam vendê-las ou refinanciá-las. Os credores, de igual modo, ignoraram a possibilidade de calote porque os preços cada vez mais elevados dos imóveis residenciais haviam facilitado a erradicação de empréstimos de amortização duvidosa de seus livros. Tobacman citou uma frase de John Kenneth Galbraith em The great crash, em que o autor narra os eventos que culminaram com a Grande Depressão: “Os banqueiros foram também fonte de incentivo para aqueles que queriam acreditar na persistência do boom. Muitos deles abandonaram seu papel histórico de guardiões do pessimismo fiscal da nação e gozaram de um breve intervalo de otimismo.”

Tobacman acrescentou: “A questão é a seguinte: quando, exatamente, esse ímpeto poderoso de acreditar num futuro cor-de-rosa é disciplinado pelo mercado e quando fica fora de controle?”

A explosão da dívida do consumidor nos bastidores da crise é também uma questão de autocontrole, observou Angela Lee Duckworth, da Universidade da Pensilvânia. “Adiar a gratificação é um problema perene para o ser humano. Todos lutamos, desde criança até a velhice, até mesmo os mais sábios, com o problema do autocontrole.”

Duckworth definiu o autocontrole como a habilidade de negociar uma situação em que há duas escolhas, sendo uma delas obviamente superior. A outra escolha, porém, é mais tentadora. Uma pessoa de dieta, por exemplo, diante de um bolo de chocolate sabe que é melhor não comê-lo, mas come. No caso da bolha imobiliária, os compradores de imóveis residenciais não foram capazes de recorrer ao autocontrole no momento em que decidiram comprar casas maiores cujos preços não estavam ao seu alcance. Os credores deixaram de exercer o autocontrole quando decidiram bancar hipotecas duvidosas em troca de lucros bancários de curto prazo.

Durante anos, os americanos pouparam pouco e consumiram muito, disse Duckworth. A professora chamou a atenção para a conclusão de um editorial recente do Wall Street Journal de autoria de Steven Gjerstand, pesquisador associado da Universidade Chapman, e Vernon L. Smith, professor de economia da Universidade Chapman e ganhador do Prêmio Nobel de 2002: “Uma crise financeira com origem na dívida do consumidor, sobretudo em se tratando de uma dívida com peso maior na ponta mais modesta da distribuição de riqueza e de renda, repercute rapidamente e com grande impacto sobre o sistema financeiro. Parece que estamos testemunhando o segundo grande colapso da dívida do consumidor, o fim de uma farra imensa de consumo”, dizia o editorial.

Duckworth acrescentou: “Parece que meu pai tinha razão quando, em torno da mesa de jantar, dizia que ‘os americanos estavam vivendo além de suas posses’. Acho que era isso mesmo. Creio que, em parte, isso se deve ao fato de que todos os seres humanos desejam viver dessa maneira.”

O autocontrole é uma atitude que muda drasticamente com o passar do tempo, conforme explica Duckworth. Isto acontece porque o córtex pré-frontal, a área do cérebro que permite aos seres humanos controlar os impulsos e adiar o prazer, amadurece mais devagar do que outras partes do cérebro. “As regiões subcorticais e o tronco cerebral já começam a funcionar, embora não totalmente, logo que nascemos, ou pouquíssimo tempo depois disso [...] Portanto, a emoção e o impulso nessas áreas entram em funcionamento imediatamente e a todo o vapor”, disse. Contudo, o córtex pré-frontal só atinge o desenvolvimento pleno numa idade mais madura — mais ou menos entre os 30 anos e, possivelmente, próximo dos 50.

“Existe um descompasso entre emoções e impulsos [...] e é preciso esperar até que o indivíduo atinja pelo menos 25 anos para que o córtex frontal esteja em plena forma para derrotar os desejos mais instintivos.”

Estudos realizados pelo psicólogo Walter Mischel para avaliar em que medida uma criança em idade pré-escolar é capaz de adiar com sucesso o desejo de gratificação (ela deve escolher entre comer um marshmallow agora ou dois mais tarde) prognosticaram uma série de resultados que se tornaram realidade mais tarde em sua vida: desde coisas como a pontuação obtida em provas decisivas para sua carreira estudantil até a probabilidade de divórcio e uso de cocaína, observou Duckworth. “Creio que descobertas desse tipo, que beiram o inimaginável, são, na verdade, bastante críveis, uma vez que Walter Mischel foi capaz de destilar em um simples teste situacional o dilema humano clássico que todos enfrentamos diariamente: mais depois ou um pouquinho agora?”

Esses e outros estudos sobre a satisfação adiada mostraram que a autodisciplina é um fator de enorme importância no prognóstico de sucesso futuro, mais do que outros fatores como o Q.I., disse Duckworth. Um melhor entendimento da psicologia do autocontrole poderia ajudar na “criação de políticas governamentais que, aparentemente, seriam capazes de acomodar as realidades da natureza humana”.

Uma questão de confiança

“O que acontece quando a bolha estoura, já que o desfecho não pode ser outro?”, indagou Herring. O pêndulo volta para o outro extremo. “As pessoas descobrem facilmente que coisas ruins podem acontecer ao mercado e batem em retirada. Elas exageram na dose, tornam-se extremamente avessas ao risco durante muito tempo até se convencerem finalmente de que os ativos imobiliários merecem confiança outra vez.”

De acordo com David M. Sachs, analista de treinamento e supervisão do Centro Psicanalítico da Filadélfia, a crise hoje não é de confiança, e sim de responsabilidade. “Práticas financeiras abusivas prosperaram livremente sem que as amarras do controle moral pessoal impedissem o comportamento criminoso individual, como no caso de Bernard Madoff, bem como manipulações financeiras complexas, como no caso da AIG.” O público, que esperava ser protegido de tais abusos, foi vítima de um trauma que lhe infligiu um sentimento de abandono semelhante ao que se seguiu ao 11 de setembro. “As expectativas normais do que se considera seguro e confiável foram abruptamente abaladas”, observou Sachs. “Como costuma acontecer em situações pós-traumáticas, planejar o futuro não é algo que se possa fazer com base em pressupostos antigos sobre o que se considera seguro e o que se considera perigoso. Houve uma inversão radical de como a gratificação deve ocorrer.”

Hoje, as pessoas se sentem mais gratificadas economizando do que gastando, disse Sachs. Elas têm dificuldade em confiar nas promessas do governo porque se sentem abandonadas por ele.

Esse argumento nasceu de uma paciente fictícia chamada Betty Q. Public, uma bibliotecária com dois filhos adolescentes casada com John, há pouco despedido do emprego. “Ela se sentia traída porque havia investido, juntamente com o marido, em aplicações conservadoras, mas foram enganados por homens de negócios desonestos e gananciosos. Agora, ela não confia mais no governo, porque ele não a protegeu da desonestidade das empresas. E não só isso: ela também não acredita que as coisas possam tomar outro rumo rapidamente, de tal modo que ela e seu marido possam atingir as metas que haviam estabelecido anteriormente.

“Mesmo não sendo de forma alguma perita em economia, ela sabia que [...] algumas pessoas haviam enriquecido de forma fabulosa trapaceando com o dinheiro alheio — inclusive o dela”, disse Sachs. “Em suma, John e Betty fizeram tudo do jeito certo e estavam sendo punidos, enquanto outros, que agiram de má fé, seguiam em frente sem castigo algum.”

Ajudar alguém a se recuperar de uma experiência traumática é uma analogia muito boa, porque permite entender o que deve ser feito para ajudar a economia a se recuperar de sua experiência traumática, ressaltou Sachs. O público deve “chamar à responsabilidade os autores do desastre econômico e tomar as medidas necessárias para que a economia não seja novamente prejudicada”. Além disso, é preciso que o público tenha provas de que líderes do governo e das empresas mudaram de comportamento para que possam confiar neles novamente, disse.

“Uma vez traumatizada a pessoa, toda promessa [...] lhe parece perigosa — indigna de confiança — porque para acreditar é preciso confiar”, disse Sachs. “Cabe à vítima decidir em que momento poderá confiar novamente. Isso leva tempo.”

http://www.wharton.universia.net/index.cfm?fa=viewArticle&id=1694&language=portuguese

Publicado em: 22/04/2009